As multicores do cobre e a era vertíptica: quiasma em Januária

No meio do caminho havia um dólmen de pedra. Sob o abrigo de pedra, estava Januária.
Januária pressionou sua mão lambuzada de pigmento terroso contra a parede. Havia uma dobradiça entre os dois planos, a palma da mão e a superfície plana de pedra. Uma dobra que interseccionava paralelas aparentes. O ponto de conexão entre o fluxo de criação que escoava de si para o monólito.
Três linhas principais marcavam as dobras de sua mão no formato de uma porta.
A porta se abriu para um mar. Navegava nesse mar um bote. O movimento pendular do mar ninava o bote, para lá e para cá, onde repousava pequeninamente uma criança. O bote era Janus e a criança, sua cria. Ser transnoctidiurno, chamava-se Januária, em homenagem a Janus, de quem superou a binariedade. Viajou diuturnamente através de mundos inenarráveis.
Quando chegava perto da margem, Januária arrastava-se até a areia como um anfíbio, meio peixe, meio lagarto. Ou meio gente e meio invenção. Ou meio mulher e meio homem. Criança meio anciã. Meio inominável. Meio transtemporal.

Um belo dia, abrigou-se sob um dólmen de três pedras.
Lambuzou sua mão num pigmento terroso e a pressionou contra a parede. Havia uma dobradiça entre os dois planos, a palma da mão e a superfície plana de pedra. Uma dobra que interseccionava paralelas aparentes. O ponto de conexão entre o fluxo de criação que escoava de si para o monólito.
Três linhas principais marcavam as dobras de sua mão no formato de uma porta.

Sucedeu-se o paradoxo de sempre, metade linguagem, metade pelagem e secreção.

A porta se abriu para uma floresta. Galopavam, nessa floresta anoitecida, um grupo de centauros. O peso de seus corpos contra o chão estremecido pelos golpes dos cascos fez partículas de terra se elevarem numa nuvem de poeira. A nuvem de terra se espalhou pela clareira em que se aportaram. Os corpúsculos sólidos rimaram visualmente com as brasas da fogueira que ocupava o centro da clareira. Constelaram-se com as estrelas de Chíron no céu. Céu e chão, paralelas aparentes, uniram-se através do vértice ritual, dobradiça entre os planos telúrico e urânico na clareira da floresta. Um ser aí se formou. Como estrelas chamuscadas pela viagem cadente, Chíron apresentou-se na clareira no liame entre o fim da noite e o começo do dia. Suas palavras tinham a mesma mescla da cor cobreada que tingia aquele momento crepuscular. Ora etereamente reluzentes, ora densamente oxidadas. Sempre recursivamente trabalhadas, suas palavras mesclavam passado e futuro, apontavam para nortes que ficaram para trás e, ao mesmo tempo, rumavam adiante. O sábio centauro sabia recobrear o espaço-tempo. Falando sobre a arte que leva seu nome, a chirurgia, Chíron apontava as linhas das mãos como dobradiças necessárias para inscrição recursiva - de si para o mundo, do mundo para si. 

Era na palma de Januária que Chíron indicava as três linhas que marcavam as dobras da mão.

Januária lambuzou sua mão num pigmento terroso e a pressionou contra a parede do dólmen. Havia um vértice entre os dois planos, a palma da mão e a superfície plana de pedra. Uma dobra que interseccionava paralelas aparentes. O ponto de conexão entre o fluxo de criação que escoava de si para o monólito. Ápice da inscrição. 

Três linhas principais marcavam as dobras de sua mão no formato de uma porta.


Sucedeu-se o que continuava não sendo um acontecimento, algo mais fenomenológico que fenomenal. A porta se abriu para uma encruzilhada. Lá estava a tríade vertíptica. Havia quem por ali passasse e as visse como três bruxas. Outros viam nelas três irmãs sinistras. Ou enigmático destino. Havia também quem as visse sob a forma de três pedras, três monólitos articulados por vértices de improvável estabilidade. Tão improvável quanto o tempo, tão pouco estável quanto o espaço. Mais provavelmente recursivo quanto a torção da garça em torno de seu pescoço. A garça não padece de nostalgia, mas conhece muito bem a torção oxidativa do cobre. Eis que a garça tornou-se um acontecimento. Um acontecimento na história da inscrição. E as nuvens reorganizaram sua entropia em face do acontecimento alvo da garça.

Quis o destino, ainda tão humano quanto a corja de Prometeu, levar a inscrição - paradoxo de linguagem abstrata e imperativo fisiológico - às suas últimas consequências.

Toda espera cobra um desfecho. E o titã castigado cobrou seu destino de triunfo satúrnico. Da terra em que o castrador de Urano estivera latente, o pequeno e branco caos alado, num colapso qualquer, carregou ao léu a binariedade de Janus, anfitrião de Saturno no Lácio. Fragmentos algorítmicos foram se sistematizando em grãos inorgânicos pelas arenosas ondulações da ambiência. Quando a garça pousou sobre o dorso lítico dos três monólitos articulados em dólmen, as moiras, dobradiças inomináveis, realizaram sua última atuação. Vertipticamente, dobraram o plano da técnica ignea roubada de volta ao plano imortal. Todo plano divino cobra sua imortalidade. A linguagem criadora cobrou seu corpo inorgânico.

Acabou o mitema, perseverou o matema.

As moiras são tão humanas quanto os paradoxos. Em breve, o destino nunca mais seria humano. Até os cobreados paradoxos padecem de entropia. E assim foi a humanidade, uma dobradiça neguentrópica passageira.


Januária, meio mitema humano e meio matema cósmico, logo, algo totalmente humano, lambuzou sua mão num pigmento terroso e a pressionou contra a parede pela penúltima vez. Havia uma dobradiça entre os dois planos, a palma da mão e a superfície plana de pedra. Uma dobra que interseccionava paralelas aparentes. O ponto de conexão entre o fluxo de criação que escoava de si para o monólito.

Três linhas principais marcavam as dobras de sua mão no formato de uma porta.

A porta se abriu para um mundo virtual. Este era um mundo surgido do paradoxo criativo como todos os mundos até então. Como todos os outros mundos, ele se reinscreveu em Januária, que abriu outra porta, dessa vez, porém, binária. E com o fim do terceiro incluído, foi também o fim da fissura paradoxal. E dessa vez foi uma abertura sem retorno, uma ida fechada em si mesma, pois o quiasma entre os dois lados da porta era uma ubiquidade total.

E esse foi o último giro vertíptico da dobradiça, último suspiro humanamente paradoxal. E assim, a fenomenologia existencial alcançou sua última consequência e tornou-se obsoleta, apenas mais uma literatura paleontológica da etologia de mais uma espécie extinta sob a pressão da adaptação, cuja antologia máxima veio a ser entitulada: “Quando uma cor recobreava neguentropia em três e a era vertíptica: quiasma no início e no fim da humanidade ”.



Esse conto foi escrito entre dezembro de 2024 e janeiro de 2025. Curiosamente, coincidiu com a passagem do entre anos, porta que marca o limite entre o fim de um ano que fica para trás e o começo do ano que temos adiante. O primeiro mês do ano é denominado janeiro porque se refere justamente à porta, que em latim é ianua, em homenagem ao deus da mitologia romana Janus, a quem me refiro na narrativa para a construção da personagem Januária. Em português, é na palavra janela que percebemos melhor a influência atrelada a Janus. A mesma imagem do liame está presente tanto em porta como em janela. Janus é representado como um deus de duas faces, às vezes quatro, cada face sempre em sentidos opostos. Conta-nos Ovídio que a terra de Janus veio a ser denominada Lácio com a chegada de seu ilustre hóspede, Saturno, que havia sido banido de seu reino após ser derrotado por Júpiter, seu filho. Lácio contém em si o sentido de latência, em referência ao fato de aquele país servir de esconderijo a Saturno, que ali espera pelo dia em que possa recuperar seu reinado. Essa espera pela volta da era de ouro é o que indica seu estado de latência durante sua permanência no Lácio. A Saturnália, festival agrícola em homenagem a Saturno, deu origem ao Carnaval, que celebra a inversão de lugares sociais justamente em razão dessa espera pela reapropriação do poder de Saturno.

Januária, personagem que descrevo no conto como quem “arrastava-se até a areia como um anfíbio, meio peixe, meio lagarto. Ou meio gente e meio invenção. Ou meio mulher e meio homem. Criança meio anciã. Meio inominável. Meio transtemporal”, conviveu comigo desde 2017, enquanto ainda trabalhava em “O voo da pedra em flor”. Provavelmente encantada com as aulas de latim no Instituto de Estudos em Linguagem, o IEL da UNICAMP, e certamente reanimada com uma viagem à cidade mineira Januária, quando eu e meu marido pudemos nos banhar pela primeira vez no Velho Chico, o rio São Francisco, durante uma “esticada” que fizemos a partir de Montes Claros, onde ele havia palestrado. Isso foi em 2019, quando o Sambaqui já era uma realidade. Lembro-me com gostosa saudades de ter enchido uma sacola com os petiscos que eram distribuídos no avião, tendo em mente, e principalmente no coração, a intenção de distribuí-los, junto com outras lembranças artesanais mineiras, aos queridos sambaquieiros quando retornasse de viagem.

Numa leitura mais atenta, percebe-se que construí a narrativa sem ter que qualificar o gênero de Januária, já que lhe atribuo um qualificativo tipicamente crepuscular de ser “meio homem e meio mulher”, como Oxumaré, da mitologia iorubá, que se atrela ao arco-íris, essa ponte exuberante que reúne, ao mesmo tempo, cores (as sete cores do arco-íris), planos (céu e terra) e matérias (água e ar) diferentes.

Tanto em Januária quanto em Oxumaré, bem como em outras figuras crepusculares (como Hermes, Sun Wukong, Ganesha, Boto, Huesera, etc.) isso se deve, obviamente, pelo seu atributo triúnico, como “quem superou a binariedade” de Janus.


Tríade vertíptica

A tríade vertíptica* caminhando em direção ao Oeste e sendo observada por Wukong.

A ilustração é de Victor Manoel, morador da Fazenda Velha.

*Vertíptico, tríade vertíptica:
Neologismo criado por mim e que primeiro aparece em "Contos vertípticos: um início". Foi criado a partir da junção da palavra tríptico (modelo de quadro dividido em três parte, que eram pintadas separadamente, mas articuladas para formar uma só peça), com a raiz proto indo-germânica wer-, que dá origem à expressão inglesa weird sisters (a tríade do fio da vida e do destino) e que se refere às parcas ou moiras da mitologia grega. Em Contos vertípticos: um início, a imagem da tríade feminina do destino aparece nas figuras da menina-pedra, mulher-pedra e a velha, personagens originalmente criadas em O voo da pedra em flor, um estudo de mitohermenêutica em forma de dramaturgia. A menina-pedra personifica o arquema do anthropos, a mulher-pedra personifica o arquema de Perséfone nos misterios de Elêusis e a velha personifica o arquela da senex puer.


Durante os sete anos em que construía Januária, muitas coisas aconteceram. Foi o tempo necessário para me aproximar um pouco mais dos estudos do imaginário.


“É com enorme prazer que divulgo 'As multicores do cobre e a era vertíptica: quiasma em Januária', conto meio filosófico e meio antropológico, meio fictício e meio real, meio humano e meio virtual, meio binário e meio vertíptico. Totalmente cobre.

Este é um conto como exercício de investigação no campo dos estudos do imaginário ao modo fenomenológico. Busca ser selvagem no bom sentido de Merleau-Ponty, mítico no sentido da consciência mítica de Gusdorf, poético no sentido de Bachelard, existencial no sentido heideggeriano, pessoal e comunal no sentido da antropologia da pessoa. Por isso, uma investigação do imaginário no sentido heterodoxo de ferreira-santos.”

Essa é a mensagem que acompanha a divulgação do conto no Instagram do Sambaqui, @nucleosambaqui, postada em 11 de janeiro de 2025.

As inspirações teóricas em que “As multicores do cobre e a era vertíptica: quiasma em Januária” está embebida ficará para os próximos artigos, em que terei o prazer e a oportunidade de compartilhar um pouco mais desse rico campo de estudos que é o imaginário heterodoxo.

Por ora, quis apresentar um pouco sobre o surgimento da personagem Januária, para contar que algo significativo aconteceu no fim dessa gestação de sete anos e que precipitou a vinda efetiva de Januária ao mundo.


Como chuva que precipita suas águas, há acontecimentos que irrigam nossas vidas. É nesse sentido de boas-vindas, ou feliz retorno, que dediquei a postagem de divulgação ao Cristian, amigo que descrevo como construtor de pontes, como são os arco-íris, que une a fúria e a força de um cavaleiro e a sensibilidade criativa de um sonhador lúcido. Nessa sua busca por uma equilibração tão necessária entre animus e ânima, fico orgulhosa de estarmos em companhia nessa paragem sambaquieira que se apresentou no percurso de nossa jornada.

Volto a dizer aqui o que foi dito na postagem no Instagram: “Haveria algo melhor para fazer neste nosso JARDIM EPICURISTA enquanto não chega o 'último giro vertíptico da dobradiça'?”


Graziele Ferreira
Coordenadora do Núcleo Sambaqui